14.12.25

#4296

Arrumo o peso morto 

que se mistura com o dia cansado, 

a rua não tem prisões 

mostra-se na penumbra amaciada.

13.12.25

#4295

Está tratado, 

o tratado que nos trata, 

a profilaxia do futuro.

12.12.25

Injustiças documentadas (626)

Trocamos 

dois dedos de conversa

não sabemos

se ficamos com os dedos trocados

ou com a conversa coalhada.

A ardósia dos pobres

Pé curto

a língua de trapos

ensaboa a ardósia

e deixa, em letra de médico,

o verso de barro.

 

Os cavalos comem alfafa

(é da ordem dos costumes literários)

e os tratadores 

trocam dois dedos de conversa.

 

Amanhã é a feira

esperam-se as casadoiras em sua demanda

e os rapazes não aguentam a espera.

 

Os cavalos podem,

eles sim,

com a espera que for precisa.

 

No meio da aldeia

a ardósia ultrajada pela letra de trapos

cumpre a sua função:

 

as pessoas passam

e ficam 

olimpicamente

indiferentes.

#4294

Lateja 

num frémito repentino 

o estaleiro alfaiate

a forma onde ninguém cabe.

11.12.25

#4293

Em pinças 

assim o exige a fragilidade

o estado perene 

de quem faz a contabilidade dos dias.

10.12.25

#4292

Cobro o frio com o corpo 

cobro o preço regateado.

9.12.25

Injustiças documentadas (625)

Ao abrigo 

da liberdade de circulação de capitais 

a Europeia União aceitou o resgate 

de Lisboa por Viena.

#4291

Anoitece 

o olhar embaciado 

cobra a esperança 

do dia adiado.

8.12.25

#4290

A pilhagem sem máscara 

segue em velocidade de cruzeiro 

a farsa colhe por défice de lisura.

7.12.25

#4289

O verso precoce 

atravessa o luar escondido, 

escolta os suores frios da noite.

6.12.25

#4288

Uma luz vermelha 

quando remexes nas provectas memórias 

magoa o peito 

que deseja o esquecimento.

5.12.25

Injustiças documentadas (624)

Conversa fiada, 

dizias, 

mas sem saberes 

o nome do fiador.

#4287

A desvantagem dos eremitas

é paisagística.

4.12.25

Desastrado

Apanhas as ostras com os dentes

tu que sabes falar uma dúzia de idiomas

e calças sempre sapatos puídos

sem nunca teres feito votos monásticos. 

Olhas pelos cantos dos olhos

para poupar a vista

e em verdade se diga 

que chegaste à proveta idade que carregas

sem nunca teres visto através de lentes. 

Há quem diga

és o único a disfarçar a miopia

o que ajuda a perceber

todos os vieses que recolhes com entusiasmo. 

De amanhã em diante

juras olhar as coisas só com um olho. 

Não concorres para Camões

que não se recomendariam os versos

se algum dia deles parisses autoria. 

Essa tua simplicidade

ainda te há de granjear

um par de dissabores.

#4286

A tença sem cabimento

deixa o serviçal todo ledo;

o estrago vertebral

fica tatuado no rosto coletivo.

3.12.25

Avarias

Ou a corda toda

desatada no pináculo do cinismo

que a obediência pertence aos fortes

e eu acanho-me na singela fraqueza

que me abraça.

 

Deste berço loquaz

escondo o sangue gourmet

aquele que vampiros e companhia dispensam

e por minha bússola tomo

com as mãos humildemente trémulas

o cálice que testemunha o néctar singular;

de um homem fraco

esperam-se vícios, não virtudes,

e até dizem

que a bússola estava avariada

e ninguém me disse nada.

 

Acordo

a corda toda

no promontório da incivilização,

como se ainda não tivesse arpoado

o meu vinte e cinco de abril,

os pesadelos desenfreados

escaldaram o dia

e agora, 

irascível e refém do avesso de mim,

teço-me 

nas juras que não haverei de fazer. 

#4285

Às vezes 

dizemos nicles, 

e não somos apóstolos 

do minimalismo.

2.12.25

#4284

Um certo fio 

entre o luar e os dedos 

tece a imagem de um feitiço. 

1.12.25

À posteridade

A posteridade

a secreção sem nódoas

o grito apiedado dos algozes

a roda sequencial das estrofes

dedilhadas as sílabas na vertigem 

de um caçador,

a posteridade

ó tão gasta e ainda antes do tempo.

 

A posteridade

a vítima favorita dos deuses

na condenação das vontades

ao mero remorso que vagueia

entre os destroços avinagrados 

pelas lágrimas furtivas.

#4283

Os pé de volta 

desenham as fronteiras havidas 

e os escombros deixam de contar.

30.11.25

#4282

O cheiro a perfídia 

enche os cofres dos malsãos 

transforma a corrupção em gramática.

29.11.25

#4281

A pele lisa 

recebe as palavras doadas 

no desembaraço do desejo.

28.11.25

Indiviso

Tanto queria o tempo inteiro

tanto era o que perdia

no úbere indiviso da noite. 

 

Tanto era o aperto da angústia

tanto queria o exílio por perto

na boca extinta por fantasmas sem nome. 

 

Tanto queria ser a lava do vulcão

tanto era aquele nome sem paradeiro

deitado na estola que protegia da ofensa. 

 

Tanto era o vigilante sem sono

tanto queria da noite a pedra inaugural

no provérbio arrastado pelo caudal vertiginoso. 

Injustiças documentadas (623)

As nozes 

obviamente 

a quem tem dentes.

#4280

Arrumo a tralha dourada 

os verbetes da fala 

transcritos em sangue gasto.

27.11.25

Injustiças documentadas (622)

Não quero poetas mortos 

que a poesia que há por vir

só a dão os vivos.

Toponímia

Em vez 

das folhas venais

da manhã anónima

das soluçadas mentiras

dos altares desta vez aos frágeis

das efemérides apátridas

dos motivos ao acaso

dos colarinhos desengomados

e das finas mesuras 

de quem já não deita cotovelos na mesa

um tira-teimas

que as teimas estão pela hora da morte

e ninguém sabe que preço é esse

nem se a inflação se soma à idade

a que temos direito

este nosso luar ausente

dos rostos engaiolados no respeito atávico

nas modas tirânicas que ensurdecem

e povoam o sono com insónias contumazes. 

Em vez 

das vezes em que vagamos a voz

vantagem minha

como no ténis

e o fio da aurora preso ao cabelo enxuto

descai no parapeito que ateia as luzes válidas:

não digam a ninguém

que recusei uma comenda

porque não sei ser 

vez em vez de mim mesmo. 

#4279

Um enorme telescópio 

virado do avesso 

um intruso de fora para dentro.

26.11.25

#4278

Onde os escombros falam 

a carne torna-se silêncio.