Arrumo o peso morto
que se mistura com o dia cansado,
a rua não tem prisões
mostra-se na penumbra amaciada.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Arrumo o peso morto
que se mistura com o dia cansado,
a rua não tem prisões
mostra-se na penumbra amaciada.
Trocamos
dois dedos de conversa
não sabemos
se ficamos com os dedos trocados
ou com a conversa coalhada.
Pé curto
a língua de trapos
ensaboa a ardósia
e deixa, em letra de médico,
o verso de barro.
Os cavalos comem alfafa
(é da ordem dos costumes literários)
e os tratadores
trocam dois dedos de conversa.
Amanhã é a feira
esperam-se as casadoiras em sua demanda
e os rapazes não aguentam a espera.
Os cavalos podem,
eles sim,
com a espera que for precisa.
No meio da aldeia
a ardósia ultrajada pela letra de trapos
cumpre a sua função:
as pessoas passam
e ficam
olimpicamente
indiferentes.
Ao abrigo
da liberdade de circulação de capitais
a Europeia União aceitou o resgate
de Lisboa por Viena.
Uma luz vermelha
quando remexes nas provectas memórias
magoa o peito
que deseja o esquecimento.
Apanhas as ostras com os dentes
tu que sabes falar uma dúzia de idiomas
e calças sempre sapatos puídos
sem nunca teres feito votos monásticos.
Olhas pelos cantos dos olhos
para poupar a vista
e em verdade se diga
que chegaste à proveta idade que carregas
sem nunca teres visto através de lentes.
Há quem diga
és o único a disfarçar a miopia
o que ajuda a perceber
todos os vieses que recolhes com entusiasmo.
De amanhã em diante
juras olhar as coisas só com um olho.
Não concorres para Camões
que não se recomendariam os versos
se algum dia deles parisses autoria.
Essa tua simplicidade
ainda te há de granjear
um par de dissabores.
A tença sem cabimento
deixa o serviçal todo ledo;
o estrago vertebral
fica tatuado no rosto coletivo.
Ou a corda toda
desatada no pináculo do cinismo
que a obediência pertence aos fortes
e eu acanho-me na singela fraqueza
que me abraça.
Deste berço loquaz
escondo o sangue gourmet
aquele que vampiros e companhia dispensam
e por minha bússola tomo
com as mãos humildemente trémulas
o cálice que testemunha o néctar singular;
de um homem fraco
esperam-se vícios, não virtudes,
e até dizem
que a bússola estava avariada
e ninguém me disse nada.
Acordo
a corda toda
no promontório da incivilização,
como se ainda não tivesse arpoado
o meu vinte e cinco de abril,
os pesadelos desenfreados
escaldaram o dia
e agora,
irascível e refém do avesso de mim,
teço-me
nas juras que não haverei de fazer.
A posteridade
a secreção sem nódoas
o grito apiedado dos algozes
a roda sequencial das estrofes
dedilhadas as sílabas na vertigem
de um caçador,
a posteridade
ó tão gasta e ainda antes do tempo.
A posteridade
a vítima favorita dos deuses
na condenação das vontades
ao mero remorso que vagueia
entre os destroços avinagrados
pelas lágrimas furtivas.
Tanto queria o tempo inteiro
tanto era o que perdia
no úbere indiviso da noite.
Tanto era o aperto da angústia
tanto queria o exílio por perto
na boca extinta por fantasmas sem nome.
Tanto queria ser a lava do vulcão
tanto era aquele nome sem paradeiro
deitado na estola que protegia da ofensa.
Tanto era o vigilante sem sono
tanto queria da noite a pedra inaugural
no provérbio arrastado pelo caudal vertiginoso.
Em vez
das folhas venais
da manhã anónima
das soluçadas mentiras
dos altares desta vez aos frágeis
das efemérides apátridas
dos motivos ao acaso
dos colarinhos desengomados
e das finas mesuras
de quem já não deita cotovelos na mesa
um tira-teimas
que as teimas estão pela hora da morte
e ninguém sabe que preço é esse
nem se a inflação se soma à idade
a que temos direito
este nosso luar ausente
dos rostos engaiolados no respeito atávico
nas modas tirânicas que ensurdecem
e povoam o sono com insónias contumazes.
Em vez
das vezes em que vagamos a voz
vantagem minha
como no ténis
e o fio da aurora preso ao cabelo enxuto
descai no parapeito que ateia as luzes válidas:
não digam a ninguém
que recusei uma comenda
porque não sei ser
vez em vez de mim mesmo.